Os movimentos para a criação de moedas virtuais pelos bancos centrais mundo afora mostram o quanto estamos próximos de abandonar para sempre as cédulas em papel.
Confrontados com a multiplicação de criptomoedas, bancos centrais no mundo todo preparam-se para lançar suas próprias moedas digitais. É uma reação compreensível e tardia dessas instituições — “autoridades monetárias” que há 350 anos definem o poder de governos sobre seus territórios — diante de iniciativas descentralizadas e meio anárquicas. As experiências dos BCs podem ter grande impacto sobre os sistemas monetários nacionais e global.
O Banco Central do Brasil anunciou a estreia da versão do real em blockchain para 2024. China, Japão, Suécia e Nigéria já estão testando com o público as chamadas “moedas digitais de bancos centrais” ou CBDC, na sigla em inglês. O BC Europeu e o Banco da Inglaterra iniciaram projetos-piloto. O Brasil e os Estados Unidos estudam a possibilidade. E as ilhas Bahamas lançaram, em outubro passado, o “Sand dollar” (dólar de areia) — a primeira moeda digital de banco central no mundo.
Por trás de toda essa movimentação há uma enorme transformação do sistema monetário. Quando o assunto é inovação no setor público não há outra mudança mais disruptiva do que essa. Para o economista Eswar Prasad, autor do livro “O futuro do dinheiro: como a revolução digital está transformando moedas e finanças” (em uma tradução livre), o mundo das finanças está no limiar de uma grande ruptura que afetará corporações, banqueiros, estados. E essa metamorfose do dinheiro, segundo Prasad, reescreverá fundamentalmente como as pessoas comuns vivem, investem, negociam. Para ele, os bancos centrais vão acelerar o processo, com suas moedas digitais.
É uma reação a algo até pouco tempo atrás impensável — a concorrência espontânea do livre mercado criou moedas concorrentes que desafiam o que se colocava como inabalável — a governança financeira global. Criptomoedas como Bitcoin ou Ethereum se multiplicam num mundo digital descentralizado. Não possuem fronteiras e rejeitam o controle dos estados. Mesmo sendo ativos voláteis e arriscados, avançam a passos largos na direção oposta dos bancos centrais, que têm como função emitir a moeda nacional e controlar o volume de dinheiro e o crédito no país. Além das criptomoedas tradicionais, multiplicam-se também as “stablecoins” ou “moedas estáveis”, como a Tether. Elas são criptomoedas como Bitcoin, usam a mesma tecnologia blockchain, mas estão atreladas a ativos de reserva como dólar, ouro ou petróleo. O que explica o sucesso meteórico.
No ano passado, a oferta de stablecoins atreladas ao dólar cresceu 500%, atingindo quase 130 bilhões de dólares em setembro de 2021, segundo o Fed americano. Mas como operam sem regulamentação, elas deixam milhões de usuários sem proteção. O temor se reforçou quando o Fed de Nova York descobriu que a Tether, uma stablecoin atrelada ao dólar, com 69 bilhões de dólares de ativos em circulação, não tinha suas prometidas reservas.
Se as inovações financeiras do mundo digital foram inicialmente bem-vindas pelos BCs como uma boa solução para incluir as milhões de pessoas no mundo sem acesso a bancos e tornar transações mais rápidas e eficientes, há agora a preocupação com o risco de que tudo saia do controle.
A China começou a projetar sua moeda digital em 2014. Em 2020, começou a usar loterias para torná-la popular. Recentemente, lançou um aplicativo que permite aos chineses usarem a versão digital do yuan em dez áreas, como Xangai e Pequim. Resta saber se os chineses vão abandonar os sistemas práticos de pagamentos em plataformas como WeChat para aderir ao aplicativo da moeda nacional digitalizada.
A batalha é pela soberania. Na mão de quem, então, vão ficar os mercados financeiro e de pagamentos?
O Banco de Compensações Internacionais ou BIS (na sigla em inglês), conhecido como o banco central dos bancos centrais, engrossou o tom ao escrever abertamente num relatório de junho de 2021 que criptomoedas trabalham contra o interesse público. Num discurso no mês passado, o diretor-geral do BIS, Augustín Carstens, respondeu assim aos que imaginam que futuramente o dinheiro e as finanças serão fornecidas unicamente por empresas tech ou por sistemas descentralizados movidos por algoritmos: “Minha mensagem hoje é simples: a alma do dinheiro não pertence a uma grande tecnologia nem a um ledger anônimo. A alma do dinheiro é a confiança. E os bancos centrais são e continuam a ser as instituições mais bem posicionadas para fornecer confiança na era digital”.
Jogo de poder
Há ainda uma questão geopolítica. Com o yuan digital, a China tenta se contrapor ao domínio do dólar, das criptomoedas e das empresas de tecnologia americanas.
“O yuan digital tem vantagem de ir contra a tentativa de questionamento da soberania nacional pelas moedas privadas. E questiona o dólar. No fundo, o que estamos vendo é um problema geopolítico: quem sai na frente, sai com vantagem. Por que os Estados Unidos não saíram na frente? Porque não interessa. Eles estão muito bem, obrigado, enquanto o dólar for padrão comercial”, afirma o economista Fernando Nogueira Costa, professor da Unicamp e ex-vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal. É uma visão compartilhada por John Ninia, pesquisador da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. “Se moedas alternativas se tornarem padrão, o dólar se tornará muito mais dominante, enquanto o yuan será prejudicado”, escreveu. Além disso, “a China perderia muito controle sobre seu sistema monetário e atividades ilegais, como lavagem de dinheiro, se tornariam mais fáceis”.
Fernando Nogueira Costa acha que “o BC brasileiro tem de reagir”. Como a moeda digital não tem fronteira, um exportador do agronegócio para a China, que vai receber em yuan digital, pode decidir manter o dinheiro numa conta na China e não no Brasil. “Há uma possibilidade de fuga de capital muito grande. O Banco Central brasileiro, assim como o europeu e o Fed, não podem ficar de fora, porque senão perdem para moedas privadas e para moedas internacionais (como yuan digital)”, alerta.
Empurrados pela nova realidade para o mundo das techs, BCs estão pisando em ovos. Se lançar suas próprias moedas digitais traz muitos benefícios, os riscos são igualmente consideráveis. Especialistas apontam como vantagens “tirar atividades econômicas ilícitas das sombras”, como tráfico e lavagem de dinheiro.
Outro benefício é a inclusão financeira. “Há muita gente que não tem acesso a serviços financeiros porque não possui histórico de suas transações. Se você obtiver uma conta CBDC junto com sua certidão de nascimento, terá um registro de transação a partir de então e poderá obter acesso à economia mais ampla. Fornecer esse serviço como um bem público é potencialmente mais poderoso do que fornecer isso em uma estrutura que tem acionistas”, avalia Lewis McLellan, editor do Instituto Monetário Digital do Fórum Oficial de Instituições Monetárias e Financeiras (OMFIF), um think tank em Londres.
Mas há o outro lado da moeda. Se qualquer um puder ter conta digital no BC, num momento de crise, todo mundo vai jogar seu depósito à vista nos bancos para a conta no Banco Central, para não quebrar. Banco Central não quebra. Bancos comerciais quebram. Isso gera carência de liquidez. Teria de socorrer o sistema bancário. Esse é um grande problema ”, diz Fernando Nogueira Costa.
Outra preocupação é com o fim da privacidade, algo mais crítico em países com democracias frágeis. Especialistas já questionaram o poder de identificação e rastreamento de cidadãos considerados detratores por governos totalitários.
O mundo caminha para o fim do papel-moeda, o dinheiro vivo? Lewis McLellan, editor do Instituto Monetário Digital do OMFIF, acha que não. “A maioria desses bancos centrais está olhando para as moedas digitais do banco central como um complemento ao sistema de pagamento atual, não como um substituto para o dinheiro.” Mas muitos economistas acham que os bancos centrais acabarão sendo atropelados pela realidade. Se suas moedas digitais forem facilmente acessíveis para pagamentos digitais, “a maioria das pessoas começará a mudar para pagamentos digitais de uma forma ou de outra.”
“O dinheiro está definitivamente chegando ao fim”, afirma Prasad. “Em todo o mundo, estamos começando a ver os pagamentos digitais se tornando predominantes. Isso é verdade em muitos países de renda média, como China e Índia. E, claro, muitas economias avançadas, como a Suécia. Existem alguns países ricos, como Estados Unidos, Japão e Suíça, onde as pessoas ainda usam bastante as cédulas. Mas a realidade é que, mesmo nesses países, o uso do dinheiro está diminuindo muito rapidamente.” Nem todos os caminhos estão claros. Mas não é exagero dizer que a maior disrupção promovida pelos bancos centrais poderá ser também a maior disrupção dos próprios bancos centrais.